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[LITERATURA MEDIEVAL] - CANTIGAS




TROVADORISMO


CANTIGAS DE AMOR

No mundo nom me sei parelha,
mentre me for’ como me vai,
ca ja moiro por vos - e ai
mia senhor branca e vermelha,
queredes que vos retraia
quando vos eu vi em saia!
Mao dia que me levantei,
que vos enton nom vi fea!
E, mia senhor, des aquel di’ , ai!
me foi a mi mui mal,
e vós, filha de don Paai
Moniz, e ben vos semelha
d’aver eu por vós guarvaia,
pois eu, mia senhor, d’alfaia
nunca de vós ouve nem ei
valia d’ua correa.
Paio Soares de Taveiros - Cantiga da Ribeirinha (Esta cantiga de Paio Soares de Taveirós é considerada o mais antigo texto escrito em galego-português: 1189 ou 1198.  Teria sido inspirada por D. Maria Pais Ribeiro, a Ribeirinha,  amante de D. Sancho, o segundo rei de Portugal.)

Quer’eu em maneira de proençal
fazer agora un cantar d’amor,
e querrei muit’i loar mia senhor
a que prez nen fremusura non fal,
nen bondade; e mais vos direi en:
tanto a fez Deus comprida de ben
que mais que todas las do mundo val.
Ca mia senhor quiso Deus fazer tal,
quando a faz, que a fez sabedor
de todo ben e de mui gran valor,
e con todo est’é mui comunal
ali u deve; er deu-lhi bon sen,
e des i non lhi fez pouco de ben,
quando non quis que lh’outra foss’igual.
Ca en mia senhor nunca Deus pôs mal,
mais pôs i prez e beldad’e loor
e falar mui ben, e riir melhor
que outra molher; des i é leal
muit’, e por esto non sei oj’eu quen
possa compridamente no seu ben
falar, ca non á, tra-lo seu ben, al.
D. Dinis, CV 123, CBN 485



Proençaes soen mui ben trobar
e dizen eles que é con amor;
mais os que troban no tempo da frol
e non en outro, sei eu ben que non
an tan gran coita no seu coraçon
qual m’eu por mha senhor vejo levar.
Pero que troban e saben loar
sas senhores o mais e o melhor
que eles poden, soõ sabedor
que os que troban quand’a frol sazon
á, e non ante, se Deus mi perdon,
non an tal coita qual eu ei sen par.
Ca os que troban e que s’alegrar
van eno tempo que ten a color
a frol consigu’, e, tanto que se for
aquel tempo, logu’en trobar razon
non an, non viven [en] qual perdiçon
oj’eu vivo, que pois m’á-de matar.
D. Dinis, CV 127, CBN 489




Preguntar-vos quero por Deus,
senhor fremosa, que vos fez
mesurada e de bom prez,
que pecados foron os meus
que nunca tevestes por bem
de nunca mi fazerdes bem.
Pero sempre vos soub’amar
des aquel dia que vos vi,
mais que os meus olhos em mi,
e assi o quis Deus guisar
que nunca tevestes por bem
de nunca mi fazerdes bem.
Des que vos vi, sempr’ o maior
bem que vos podia querer,
vos quiji a todo meu poder;
e pero quis nostro senhor
que nunca tevestes por bem
de nunca mi fazerdes bem.
D. Dinis, CV 127, CBN 489

CANTIGAS DE AMIGO

Ondas do mar de Vigo,
se vistes meu amigo!
E ai Deus, se verrá cedo!
Ondas do mar levado,
se vistes meu amado!
E ai Deus, se verrá cedo!
Se vistes meu amigo,
o por que eu sospiro!
E ai Deus, se verrá cedo!
Se vistes meu amado,
por que hei gran cuidado!
E ai Deus, se verrá cedo!
Martin Codax, CV 884, CBN 1227



Pois nossas madres van a San Simon
de Val de Prados candeas queimar,
nós, as meninhas, punhemos de andar
con nossas madres, e elas enton
queimen candeas por nós e por si
e nós, meninhas, bailaremos i.
Nossos amigos todos  lá irán
por nos veer, e andaremos nós
bailando ante eles, fremosas en cós,
e nossas madres, pois que alá van,
queimen candeas por nós e por si
e nós, meninhas, bailaremos i.
Nossos amigos irán por cousir
como bailamos, e podem veer
bailar moças de bon parecer,
e nossas madres pois lá  queren ir,
queimen candeas por nós e por si
e nós, meninhas, bailaremos i.
Pero de Viviãez, CV 336, CBN 698

Em Lixboa sobre lo mar
barcas novas mandei lavrar,
ay mia senhor velida!
Em Lisboa sobre lo lez
barcas novas mandei fazer,
ay mia senhor velida!
Barcas novas mandei lavrar
e no mar as mandei deitar,
ay mia senhor velida!
Barcas novas mandei fazer
e no mar as mandei meter,
ay mia senhor velida!
João Zorro

Ai flores, ai flores do verde pinho
se sabedes novas do meu amigo,
ai deus, e u é?
Ai flores, ai flores do verde ramo,
se sabedes novas do meu amado,
ai deus, e u é?
Se sabedes novas do meu amigo,
aquele que mentiu do que pôs comigo,
ai deus, e u é?
Se sabedes novas do meu amado,
aquele que mentiu do que me há jurado
ai deus, e u é?
D. Dinis

CANTIGAS DE ESCÁRNIO E MALDIZER

Foi um dia Lopo jograr
a casa duü infançon cantar,
e mandou-lhe ele por don dar
três couces na garganta,
e foi-lhe escasso, a meu cuidar,
segundo como el canta
Escasso foi o infançon
en seus couces partir’ enton,
ca non deu a Lopo enton
mais de três na garganta,
e mais merece o jograron,
segundo como el canta.
Martin Soarez, CV 974

Ai, dona fea, foste-vos queixar
que vos nunca louv’en [o] meu cantar;
mais ora quero fazer um cantar
en que vos loarei toda via;
e vedes como vos quero loar:
dona fea, velha e sandia!
Dona fea, se Deus me perdon,
pois avedes [a] tan gran coraçon
que vos eu loe, en esta razon
vos quero já loar toda via;
e vedes qual será a loaçon:
dona fea, velha e sandia!
Dona fea, nunca vos eu loei
en meu trobar, pero muito trobei;
mais ora já un bon cantar farei,
en que vos loarei toda via;
e direi-vos como vos loarei:
dona fea, velha e sandia!
Joan Garcia de Guilhade, CV 1097, CBN 1486


Roi Queimado morreu con amor
en seus cantares, par Sancta Maria,
por Da dona que gran ben queria:
e, por se meter por mais trobador,
porque lhe ela non quis ben fazer,
feze-s’el en seus cantares morrer,
mais resurgiu depois ao tercer dia!
Esto fez el por üa sa senhor
que quer gran ben, e mais vos en diria:
por que cuida que faz i maestria,
enos cantares que faz, á sabor
de morrer i e des i d’ar viver;
esto faz el que x’o pode fazer,
mais outr’omem per ren’ nono faria.
E non á já de sa morte pavor,
senon sa morte mais la temeria,
mais sabe ben, per sa sabedoria,
que viverá, des quando morto for,
e faz-[s’] en seu cantar morte prender,
des i ar vive: vedes que poder
que lhi Deus deu, mais que non cuidaria.
E, se mi Deus a mim desse poder
qual oj’el á, pois morrer, de viver,
já mais morte nunca temeria.
Pero Garcia Burgalês, CV 988, CBN 1380


A PROSA MEDIEVAL



A DAMA PÉ-DE-CABRA
Este dom Diego Lopez era muy boo monteyro, e estando huum dia em sa armada e atemdemdo quamdo verria o porco ouuyo cantar muyta alta voz huuma molher em çima de huuma pena: e el foy pera lá e vioa seer muy fennosa e muy bem vistida, e namorousse logo della muy fortemente e preguntoulhc quem era: e ella lhe disse que era huuma molher de muito alto linhagem, e ell lhe disse que pois era molher d’alto linhagem que casaria com ella se ella quisesse, ca elle era senhor riaquella terra toda: e ella lhe disse que o faria se lhe prometesse que numca sse santificasse, e elle lho outorgou, e ella foisse logo com elle. E esta dona era muy fermosa e muy bem feita em todo seu corpo saluamdo que auia huum pee forcado como pee de cabra. E viuerom gram tempo e ouueram dous filhos, e huum ouue nome Enheguez Guerra, e a outra foy molher e ouue nome dona. E quando comiam de suum dom Diego Lopez e sa molher assemtaua ell apar de ssy o filho, e ella assemtaua apar de ssy a filha da outra parte. E huum dia foy elle a seu monte e matou huum porco muy gramde e trouxeo pera sa casa, e poseo ante ssy hu sia comemdo com ssa molher e seus filhós: e lamçarom huum osso da mesa e veerom a pellejar huum alaão e huuma podemga sobrelle em tall maneyra que a podenga trauou ao alaão em a garganta e matouo. E dom Diego Lopes quamdo esto uyo teueo por millagre e synousse e disse «samta Maria vall, quem vio numca tall cousa!» E ssa molher quamdo o vyo assy sinar lamçou maão na filha e no filho, ë dom Diego Lopez trauou do filho e nom lho quis leixar filhar: e ella rrecudio com a filha por huuma freesta do paaço e foysse pera as montanhas em guisa que a nom virom mais nem a filha.
Depois a cabo de tempo foy este dom Diego Lopez a fazer mall aos mouros, e premderomno e leuaromno pera Tolledo preso. E a seu filho Enheguez Guerra pesaua muito de ssa prisom, e ven fallar com os da terra per que maneyra o poderiam auer fóra da prisom. E elles disserom que nom sabiam maneyra por que o podessem aver, saluamdo sse fosse aas montanhas e achasse sa madre, e que ella lhe daria como o tirasse. E ell foy aláa sóo em çima de seu cauallo, e achoua em çima de huuma pena: e ella lhe disse «filho Enheguez Guerra, vem a mym ca bem sey eu ao que ueens:» e ell foy pera ella e ella lhe disse «veens a preguntar como tirarás teu padre da prisom.» Emtom charnou huum cauallo que amdaua solto pello momte que avia norne Pardallo e chamouo per seu nome: e ella meteo huum freo ao cauallo que tiinha, e disselhe que nom fezesse força pollo dessellar nem pollo desemfrear nem por lhe dar de comer nem de beuer nem de ferrar: e disselhe que este cauallo lhe duraria em toda sa vida, e que nunca emtraria em lide que nom vemçesse delle. E dissélhe que caualgasse em elle e que o poria em Tolledo ante a porta hu jazia seu padre logo em esse dia, e que ante a porta hu o caualo o posesse que alli deçesse e que acharia seu padre estar em huum curral, e que o filhasse pella maão e fezesse que queria fallar com elle, que o fosse tirando comha a porta hu estaua ho cauallo, e que dêsque alli fosse que cauallgasse em o cauallo e que posesse seu padre ante ssy e que ante noite seria em sa terra com seu padre: e assy foy. E depois a cabo de tempo morreo dom Diego Lopez e ficou a terra a seu filho dom Enheguez Guerra.
Portugaliae Monumenta Historica, Scriptores, pp. 258-259

DEMANDA DO SANTO GRAAL
(extrato)
Véspera de Pinticoste foi grande gente assüada em Camaalot, assi que podera homem i veer mui gram gente, muitos cavaleiros e muitas donas mui bem guisadas. El-rei, que era ende mui ledo, honrou-os muito e feze-os mui bem servir; e toda rem que entendeo per que aquela corte seeria mais viçosa e mais leda, todo o fez fazer.
Aquel dia que vos eu digo, direitamente quando queriam poer as mesas – esto era ora de noa – aveeo que üa donzela chegou i, mui fremosa e mui bem vestida. E entrou no paaço a pee, como mandadeira. Ela começou a catar de üa parte e da outra, pelo paaço; e perguntavam-na que demandava.
– Eu demando – disse ela – por Dom Lançarot do Lago. É aqui ?
– Si, donzela – disse üu cavaleiro. Veede-lo: stá aaquela freesta, falando com Dom Gualvam.
Ela foi logo pera el e salvô-o. Ele, tanto que a vio, recebeo-a rnui bem e abraçou-a, ca aquela era üa das donzelas que moravam na Insoa da Lediça, que a filha Amida del-rei Peles amava mais que donzela da sua companha i.
– Ai, donzela! – disse Lançalot –que ventura vos adusse aqui, que bem sei que sem razom nom veestes vós?
– Senhor, verdade é; mais rogo-vos, se vos aprouguer, que vaades comigo aaquela foresta de Camaalot; e sabede que manhãa, ora de comer, seeredes aqui.
– Certas, donzela – disse el – muito me praz; ca teúdo e soom de vos fazer serviço em tôdalas cousas que eu poder.
Entam pedio suas armas. E quando el-rei vio que se fazia armar a tam gram coita, foi a el com a raïa e disse-lhe:
– Como leixar-nos queredes a atal festa, u cavaleiros de todo o mundo veem aa corte, e mui mais ainda por vos veerem ca por al – deles por vos veerem e deles por averem vossa companha?
– Senhor, – disse el – nom vou senam a esta foresta com esta donzela que me rogou; mais cras, ora de terça, seerei aqui.
Entom se saío Lançarot do Lago e sobio em seu cavalo, e a donzela em seu palafrem; e forom com a donzela dous cavaleiros e duas donzelas. E quando ela tornou a eles, disse-lhes:
– Sabede que adubei o por que viim: Dom Lançarot do Lago se irá comnosco.
Entam se filharom andar e entrarom na foresta; e nom andarom muito per ela que chegarom a casa do ermitam que soía a falar com Gualaz. E quando el vio Lançarot ir é a donzela, logo soube que ia pera fazer Gualaaz cavaleiro, e leixou sua irmida por ir ao mosteiro das donas, ca nom queria que se fosse Gualaaz ante que o el visse, ca bem sabia que, pois se el partia dali, que nom tornaria i, ca lhe convenria e, tanto que fosse cavaleiro, entrar aas venturas do reino de Logres. E por esto lhe semelhava que o avia perdudo e que o nom veeria a meude, e temia, ca avia em ele mui grande sabor, porque era santa cousa e santa creatura.
Quando eles cheguarom aa abadia, levarom Lançarot pera üa camara, e desarmarom-no. E vëo a ele a abadessa com quatro donas, e adusse consigo Gualaaz: tam fremosa cousa era, que maravilha era; e andava tam bem vesådo, que nom podia milhor. E a abadessa chorava muito com prazer. Tanto que vio Lançarot, disse-lhe:
– Senhor, por Deos, fazede vós nosso novel cavaleiro, ca nom queriamos que seja cavaleiro por mão doutro; ca milhor cavaleiro ca vós nom no pode fazer cavaleiro; ca bem crcemos que ainda seja tam bõo que vos acharedes ende bem, e que será vossa honra de o fazerdes; e se vos el ende nom rogasse, vó-lo devíades de fazer, ca bem sabedes que é vosso filho.
– Gualaaz – disse Lançalot – queredes vós seer cavaleiro?
El respondeo baldosamente:
– Senhor, se prouvesse a vós, bem no queria seer, ca nom há cousa no mundo que tanto deseje como honra de cavalaria, e seer da vossa mão, ca doutra nom. no: queria seer, que tanto vos auço louvar e preçar de cavalaria, que nenhüu, a meu cuidar, nom podia seer covardo nem mao que vós fezéssedes cavaleiro. E esto é üa das cousas do mundo que me dá maior esperança de seer homem bõo e bõo cavaleiro.
– Filho Gualaaz – disse Lançalot – stranhamente vos fez Deos fremosa creatura. Par Deos, se vós nom cuidades seer bõo homem ou bõo cavaleiro, assi Deos me conselhe, sobejo seria gram dapno e gram malaventura de nom seerdes bõo cavaleiro, ca sobejo sedes fremoso.
E ele disse:
– Se me Deos fez assi fremoso, dar-mi-á bondade, se lhe prouver; ca, em outra guisa, valeria pouco. E ele querrá que serei bõo e cousa que semelhe minha linhagem e aaqueles onde eu venho; e metuda ei minha sperança em Nosso Senhor. E por esto vos rogo que me façades cavaleiro.
E Lançalot respondeo:
– Filho, pois vos praz, eu vos farei cavaleiro. E Nosso Senhor, assi como a el aprouver e o poderá fazer, vos faça tam bõo cavaleiro como sodes fremoso. E o irmitam respondeo a esto:
– Dom Lançalot, nom ajades dulda de Galaaz, ca eu vos digo que de bondade de cavalaria os milhores cavaleiros do mundo passará.
E Lançalot respondeo:
– Deos o faça assi como eu queria.
Entam começarom todos a chorar com prazer quantos no lugar stavam.
Demanda do Santo Graal, fl. I.


A HISTORIOGRAFIA PORTUGUESA     

Fernão Lopes , o chamado Pai da Historiografia Portuguesa, (1380?– 1460?), terá nascido em Lisboa, de uma família do povo. É considerado o maior historiógrafo de língua portuguesa, aliando a investigação à preocupação pela busca da verdade. Foi escrivão de livros do rei D. João I e «escrivão da puridade» do infante D. Fernando. D. Duarte concedeu-lhe uma tença anual para ele se dedicar à investigação da história do reino, devendo redigir uma Crónica Geral do Reino de Portugal. Correu a província a buscar informações, informações estas que depois lhe serviram para escrever as várias crónicas (Crónica de D. Pedro I, Crónica de D. Fernando, Crónica de D. João I, Crónica de Cinco Reis de Portugal e Crónicas dos Sete Primeiros Reis de Portugal). Foi «guardador das escrituras» da Torre do Tombo. Além dele, podem-se citar os cronistas Gomes Eanes de Zurara e Rui de Pina.

CRÓNICA DE D. PEDRO I
Como foi trelladada Dona Ines pera o moesteiro Dalcobaça, e da morte delRei Dom Pedro

Por que semelhante amor, qual elRei Dom Pedro ouve a Dona Enes, raramente he achado em alguuma pessoa, porem disserom os antiigos quc nenhuum he tam verdadeiramente achado, como aquel cuja morte nom tira da memoria o gramde espaço do tempo. (...) Este verdadeiro amor ouve elRei Dom Pedro a Dona Enes como se della namorou, seemdo casado e aimda Iffamte, de guisa que pero dela no começo perdesse vista e falla, seemdo alomgado, como ouvistes, que he o prinçipal aazo de se perder o amor, numca çessava de lhe emviar recados, como em seu logar teemdes ouvido. Quanto depois trabalhou polla aver, e o que fez por sua morte, e quaaes justiças naquelles que em ella forom culpados, himdo contra seu juramento, bem he testimunho do que nos dizemos. E seemdo nembrado de homrrar seus ossos, pois lhe ja mais fazer nom podia, mandou fazer huum muimento dalva pedra, todo mui sotillmente obrado, poemdo emlevada sobre a campãa de çima a imagem della com coroa na cabeça, como se fora Rainha; e este muimento mandou poer no moesteiro Dalcobaça, nom aa emtrada hu jazem os Reis, mas demtro na egreja ha maão dereita, açerca da capella moor. E fez trazer o seu corpo do mosteiro de Samta Clara de Coimbra, hu jazia, ho mais homrradamente que se fazer pode, ca ella viinha em huumas andas, muito bem corregidas pera tal tempo, as quaaes tragiam gramdes cavalleiros, acompanhadas de gramdes fidalgos, e muita outra gente, e donas, e domzellas, e muita creelezia. Pelo caminho estavom muitos homeens com çirios nas maãos, de tal guisa hordenados, que sempre o seu corpo foi per todo o caminho per antre çirios açesos; e assi chegarom ataa o dito moesteiro, que eram dalli dezassete legoas, omde com muitas missas e gram solenidade foi posto em aquel muimento: e foi esta a mais homrrada trelladaçom, que ataa aquel tempo em Portugal fora vista. Semelhavelmente mandou elRei fazer outro tal muimento e tam bem obrado pera si, e fezeo poer açerca do seu della, pera quamdo se aqueeçesse de morrer o deitarem em elle. E estamdo el em Estremoz, adoeçeo de sua postumeira door, e jazemdo doemte, nembrousse como depois da morte Dalvoro Gomçallvez e Pero Coelho, el fora çerto, que Diego Lopes Pachequo nom fora em culpa da morte de Dona Enes, e perdohou-lhe todo queixume que del avia, e mandou que lhe emtregassem todos seus beens; e assi o fez depois elRei Dom Fernamdo seu filho, que lhos mandou emtregar todos, e lhe alçou a semtemça que elRei seu padre comtra elle passara, quamto com dereito pode. (...) E morreo elRei Dom Pedro huuma segumda feira de madurgada, dezoito dias de janeiro da era de mil e quatro cemtos e cimquo anos, avemdo dez annos e sete meses e viimte dias que reinara, e quaremta e sete anos e nove meses e oito dias de sua hidade, e mandousse levar aaquel moesteiro que dissemos, e lamçar em seu muimento, que esta jumto com o de Dona Enes. E por quamto o Iffamte Dom Fernamdo seu primogenito filho nom era estomçe hi, foi elRei deteudo e nom levado logo, ataa que o Iffamte veo, e aa quarta feira foi posto no muimento. E diziam as gentes, que taaes dez annos numca ouve em Portugal, como estes que reinara elRei Dom Pedro.



Como elRei mandou degollar dous seus criados, porque roubarom huum judeu e o matarom
Este Rei Dom Pedro em quanto viveo, husou muito de justiça sem afeiçom, teendo tal igualdade em fazer direito, que a nenhuum perdoava os erros que fazia, por criaçom nem bem querença que com el ouvesse; e se dizem que aquel he bem aventurado Rei, que per si escodrinha os malles e forças que fazem os pobres, e bem he este do conto de taaes, ca el era ledo de os ouvir, e folgava em lhes fazer direito, de guisa que todos viviam em paz, e era ainda tam zeloso de fazer justiça, espeçiallmente dos que travessos eram, que perante si os mandava meter a tormento, (...). A todo o logar honde elRei hia, sempre achariees prestes com huum açoute, o que de tal offiçio tiinha encarrego, em guisa que como a elRei tragiam alguum malfeitor, e el dizia chamemme foaão que traga o açoute, logo elle era prestes sem outra tardança. E pois que escrepvemos que foi justiçoso, por fazer dereito em reger seu poboo, bem he que ouçaaes duas ou tres cousas: por veerdes o geito que em esto tiinha. (...)
A Portugal forom tragidos Alvoro Gomçallvez e Pero Coelho, e chegarom a Samtarem omde elRei Dom Pedro era; e elRei com prazer de sua viimda, porem mal magoado por que Diego Lopez fugira, os sahiu fora arreçeber, e sanha cruel sem piedade lhos fez per sua maão meter a tromento, queremdo que lhe confessassem quaaes forom na morte de Dona Enes culpados, e que era o que seu padre trautava contreelle, quamdo amdavom desa viindos por aazo da morte della; e nenhuum delles respomdeo a taaes preguntas cousa que a elRei prouvesse; e elRei com queixume dizem que deu huum açoute no rostro a Pero Coelho, e elle se soltou emtom comtra elRei em desonestas e feas pallavras, chamamdolhe treedor, fe perjuro, algoz e carneçeiro dos homeens; e elRei dizemdo que lhe trousessem çebolla e vinagre pera o coelho, emfadousse delles e mandouhos matar. A maneira de sua morte, seendo dita pelo meudo, seria mui estranha e crua de comtar, ca mandou tirar o cora çom pellos peitos a Pero Coelho, e a Alvoro Gomçallves pellas espadoas; e quaaes palavras ouve, e aquel que lho tirava que tal officio avia pouco em costume, seeria bem doorida cousa douvir, emfim mandouhos queimar; e todo feito ante os paaços omde el pousava, de guisa quc comendo oolhava quamto mandava fazer. Muito perdeo elRei de sua boa fama por tal escambo como este, o qual foi avudo em Portugal e em Castella por mui grande mal, dizemdo todollos boons que o ouviam, que os Reis erravom mui muito himdo comtra suas verdades, pois que estes cavalleiros estavom sobre seguramça acoutados em seus reinos.
Como elRei Dom Pedro de Portugal disse por Dona Enes que fora sua molher reçebida, e da maneira que em ello teve
Ja teemdes ouvido compridamente hu fallamos da morte de Dona Enes, a razom por que a elRei Dom Affonsso matou, e o grande desvairo que amtrelle e este Rei Dom Pedro seemdo estomçe Iffamte ouve por este aazo. Hora assi he que em quamto Dona Enes foi viva, nem depois da morte della em quamto elRei seu padre viveo, nem depois que el reinou, ataa este presemte tempo, nunca elRei Dom Pedro a nomeou por sua molher; ante dizem que muitas vezes lhe emviava elRei Dom Affonsso pre gumtar se a reçebera e homrrallahia como sua molher, e el respomdia sempre que a nom reçebera nem o era. (...)



O TEATRO VICENTINO

Gil Vicente (1465?-1537?): Dele pouco se sabe em concreto. Desconhece-se o local e a data exatos do nascimento e morte. Terá sido o ourives da corte, além de dramaturgo.  Sabe-se, todavia, que no dia 8 de Junho de 1502 representou um monólogo à rainha. É provável que tenha nascido na província (Guimarães), depois fixando-se em Lisboa. Na capital, a sua principal ocupação parece ter sido a de escrever e representar autos nas cortes do rei D. Manuel e do rei D. João III. É considerado o pai do teatro português. Obras: de 1502 a 1536, Gil Vicente produziu mais de quarenta peças de teatro, chegando a publicar em vida algumas delas. Colaborou no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. No entanto, só em 1562 é que o seu filho Luís Vicente publicou toda a sua obra com o título Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente, em cinco volumes. Da compilação, são mais conhecidas: Auto da Índia (1509), Exortação da Guerra (1513), Quem Tem Farelos? (1515), Auto da Barca do Inferno (1517), Auto da Fama (1521), Farsa de Inês Pereira (1523), Auto da Feira (1528) e Floresta de Enganos (1536).

AUTO DA BARCA DO INFERNO(extratos)

Barqueiro mano, meus olhos,
prancha a Brísida Vaz.
ANJO: Eu não sei quem te cá traz...
BRI.: Peço-vo-lo de giolhos!
Cuidais que trago piolhos,
anjo de Deos, minha rosa?
Eu sô aquela preciosa
que dava as moças a molhos,
a que criava as meninas
pera os cónegos da Sé...
Passai-me, por vossa fé,
meu amor, minhas boninas,
olho de perlinhas finas!
E eu som apostolada,
angelada e martelada,
e fiz cousas mui divinas.
(...)
DIA.: E as peitas dos judeus
que a vossa mulher levava?
COR.: Isso eu não o tomava
eram lá percalços seus.
Nom som pecatus meus,
peccavit uxore mea.
DIA.: Et vobis quoque cum ea,
não temuistis Deus.
A largo modo adquiristis

sanguinis laboratorum
ignorantis peccatorum.
Ut quid eos non audistis?
COR.: Vós, arrais, nonne legistis
que o dar quebra os pinedos?
Os direitos estão quedos,
sed aliquid tradidistis...
(...)
JUD.: Porque nom irá o judeu
onde vai Brísida Vaz?
Ao senhor meirinho apraz?
Senhor meirinho, irei eu?
DIA.: E o fidalgo, quem lhe deu...
JUD.: O mando, dizês, do batel?
Corregedor, coronel,
castigai este sandeu!
Azará, pedra miúda,
lodo, chanto, fogo, lenha,
caganeira que te venha!
Má corrença que te acuda!
Par el Deu, que te sacuda
coa beca nos focinhos!
Fazes burla dos meirinhos?
CAV.: À barca, à barca segura,
barca bem guarnecida,
à barca, à barca da vida!
Senhores que trabalhais
pola vida transitória,
memória, por Deos, memória
deste temeroso cais!
À barca, à barca, mortais,
barca bem guarnecida,
à barca, à barca da vida!
Vigiai-vos, pecadores,
que, despois da sepultura,
neste rio está a ventura
de prazeres ou dolores!
À barca, à barca, senhores,
barca mui nobrecida,
à barca, à barca da vida!

Farsa ou Auto de Inês Pereira

                  A seguinte farsa de folgar foi representada ao muito alto e mui poderoso rei D. João, o terceiro do nome em Portugal, no seu Convento de Tomar, era do Senhor de MDXXIII. O seu argumento é que porquanto duvidavam certos homens de bom saber se o Autor fazia de si mesmo estas obras, ou se furtava de outros autores, lhe deram este tema sobre que fizesse: segundo um exemplo comum que dizem: mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube. E sobre este motivo se fez esta farsa.
                  A figuras são as seguintes: Inês Pereira; sua Mãe; Lianor Vaz; Pêro Marques; dous Judeus (um chamado Latão, outro Vidal); um Escudeiro com um seu Moço; um Ermitão; Luzia e Fernando.
Finge-se que Inês Pereira, filha de hüa molher de baixa sorte, muito fantesiosa, está lavrando em casa, e sua mãe é a ouvir missa, e ela  canta ...
(Falando)
INÊS    Renego deste lavrar
    E do primeiro que o usou;
    Ó diabo que o eu dou,
    Que tão mau é d’aturar.
    Oh Jesu! que enfadamento,
    E que raiva, e que tormento,
    Que cegueira, e que canseira!
    Eu hei-de buscar maneira
    D’algum outro aviamento.
    Coitada, assi hei-de estar
    Encerrada nesta casa
    Como panela sem asa,
    Que sempre está num lugar?
    E assi hão-de ser logrados
    Dous dias amargurados,
    Que eu possa durar viva?
    E assim hei-de estar cativa
    Em poder de desfiados?
    Antes o darei ao Diabo
    Que lavrar mais nem pontada.
    Já tenho a vida cansada
    De fazer sempre dum cabo.
    Todas folgam, e eu não,
    Todas vêm e todas vão
    Onde querem, senão eu.
    Hui! e que pecado é o meu,
    Ou que dor de coração?
    Esta vida he mais que morta.
    Sam eu coruja ou corujo,
    Ou sam algum caramujo
    Que não sai senão à porta?
    E quando me dão algum dia
    Licença, como a bugia,
    Que possa estar à janela,
    É já mais que a Madanela
    Quando achou a aleluía.
Vem a Mãe, e não na achando lavrando, diz:
MÃE    Logo eu adivinhei
    Lá na missa onde eu estava,
    Como a minha Inês lavrava
    A tarefa que lhe eu dei...
    Acaba esse travesseiro!
    Hui! Nasceu-te algum unheiro?
    Ou cuidas que é dia santo?
INÊS    Praza a Deos que algum quebranto?
    Me tire do cativeiro.
MÃE    Toda tu estás aquela!
    Choram-te os filhos por pão?
INÊS    Prouvesse a Deus! Que já é razão
    De eu não estar tão singela.
MÃE    Olhade ali o mau pesar...
    Como queres tu casar
    Com fama de preguiçosa?
INÊS    Mas eu, mãe, sam aguçosa
    E vós dais-vos de vagar.
MÃE    Ora espera assi, vejamos.
INÊS    Quem já visse esse prazer!
MÃE    Cal’-te, que poderá ser
    Que «ame a Páscoa vêm os Ramos».
    Não te apresses tu, Inês.
    «Maior é o ano que o mês»:
    Quando te não precatares,
    Virão maridos a pares,
    E filhos de três em três.
INÊS    Quero-m’ora alevantar.
    Folgo mais de falar nisso,
    Assi me dê Deos o paraíso,
    Mil vezes que não lavrar
    Isto não sei que me faz
MÃE    Aqui vem Lianor Vaz.
INÊS    E ela vem-se benzendo...
(Entra Lianor Vaz)
LIANOR    Jesu a que me eu encomendo!
    Quanta cousa que se faz!
MÃE    Lianor Vaz, que é isso?
LIANOR    Venho eu, mana, amarela?
MÃE    Mais ruiva que uma panela.
LIANOR    Não sei como tenho siso!
Jesu! Jesu! que farei?
    Não sei se me vá a el-Rei,
    Se me vá ao Cardeal.
MÃE    Como? e tamanho é o mal?
LIANOR    Tamanho? eu to direi:
    Vinha agora pereli
    Ó redor da minha vinha,
    E hum clérigo, mana minha,
    Pardeos, lançou mão de mi;
    Não me podia valer
    Diz que havia de saber
    S’era eu fêmea, se macho.
MÃE    Hui! seria algum muchacho,
    Que brincava por prazer?
LIANOR    Si, muchacho sobejava
    Era hum zote tamanhouço!
    Eu andava no retouço,
    Tão rouca que não falava.
    Quando o vi pegar comigo,
    Que m’achei naquele p’rigo:
    – Assolverei! - não assolverás!
    –Tomarei! - não tomarás!
    – Jesu! homem, qu’has contigo?
    – Irmã, eu te assolverei
    Co breviairo de Braga.
    – Que breviairo, ou que praga!
    Que não quero: aqui d’el-Rei! –
    Quando viu revolta a voda,
    Foi e esfarrapou-me toda
    O cabeção da camisa.
MÃE   Assi me fez dessa guisa
    Outro, no tempo da poda.
    Eu cuidei que era jogo,
    E ele... dai-o vós ao fogo!
    Tomou-me tamanho riso,
    Riso em todo meu siso,
    E ele leixou-me logo.
LIANOR   Si, agora, eramá,
    Também eu me ria cá
    Das cousas que me dizia:
    Chamava-me «luz do dia».
    – «Nunca teu olho verá!» –
    Se estivera de maneira
    Sem ser rouca, bradar’eu;
    Mas logo m’o demo deu
    Catarrão e peitogueira,
    Cócegas e cor de rir,
    E coxa pera fugir,
    E fraca pera vencer:
    Porém pude-me valer
    Sem me ninguém acudir...
    O demo (e não pode al ser)
    Se chantou no corpo dele.
MÃE   Mana, conhecia-te ele?
LIANOR    Mas queria-me conhecer!
MÃE    Vistes vós tamanho mal?
LIANOR    Eu m’irei ao Cardeal,
    E far-lhe-ei assi mesura,
    E contar lhe-ei a aventura
    Que achei no meu olival.
MÃE   Não estás tu arranhada,
    De te carpir, nas queixadas?
LIANOR    Eu tenho as unhas cortadas,
    E mais estou tosquiada:
    E mais pera que era isso?
    E mais pera que é o siso?
    E mais no meio da requesta
    Veio hum homem de hüa besta,
    Que em vê-lo vi o p’raíso,
    E soltou-me, porque vinha
    Bem contra sua vontade.
    Porém, a falar a verdade,
    Já eu andava cansadinha:
    Não me valia rogar
    Nem me valia chamar:
    – «Aque de Vasco de Fois,
    Acudi-me, como sois!»
    E ele... senão pegar:
    – Mais mansa, Lianor Vaz,
    Assi Deus te faça santa.
    – Trama te dê na garganta!
    Como! isto assi se faz?
    – Isto não revela nada...
    – Tu não vês que são casada?
MÃE    Deras-lhe, má hora, boa,
    E mordera-lo na coroa.
LIANOR    Assi! fora excomungada.
    Não lhe dera um empuxão,
    Porque sou tão maviosa,
    Que é cousa maravilhosa.
    E esta é a concrusão.
    Leixemos isto. Eu venho
    Com grande amor que vos tenho,
    Porque diz o exemplo antigo
    Que a amiga e bom amigo
    Mais aquenta que o bom lenho.
    Inês está concertada
    Pera casar com alguém?
MÃE    Até ‘gora com ninguém
    Não é ela embaraçada.
LIANOR    Eu vos trago um casamento
    Em nome do anjo bento.
    Filha, não sei se vos praz.
INÊS    E quando, Lianor Vaz?
LIANOR    Eu vos trago aviamento.
INÊS    Porém, não hei-de casar
    Senão com homem avisado
    Ainda que pobre e pelado,
    Seja discreto em falar
LIANOR    Eu vos trago um bom marido,
    Rico, honrado, conhecido.
    Diz que em camisa vos quer
INÊS    Primeiro eu hei-de saber
    Se é parvo, se sabido.
LIANOR    Nesta carta que aqui vem
    Pera vós, filha, d’amores,
    Veredes vós, minhas flores,
    A discrição que ele tem.
INÊS    Mostrai-ma cá, quero ver
LIANOR    Tomai. E sabedes vós ler?
MÃE    Hui! e ela sabe latim
    E gramática e alfaqui
    E tudo quanto ela quer!
INÊS (lê a carta)
    «Senhora amiga Inês Pereira,
    Pêro Marquez, vosso amigo,
    Que ora estou na nossa aldea,
    Mesmo na vossa mercea
    M’encomendo. E mais digo,
    Digo que benza-vos Deos,
    Que vos fez de tão bom jeito.
    Bom prazer e bom proveito
    Veja vossa mãe de vós.
    Ainda que eu vos vi
    Est’outro dia folgar
    E não quisestes bailar,
    Nem cantar presente mi...»
INÊS    Na voda de seu avô,
    Ou onde me viu ora ele?
    Lianor Vaz, este é ele?
LIANOR    Lede a carta sem dó,
    Que inda eu são contente dele.
Prossegue Inês Pereira a carta:
    «Nem cantar presente mi.
    Pois Deos sabe a rebentinha
    Que me fizestes então.

    Ora, Inês, que hajais bênção
    De vosso pai e a minha,
    Que venha isto a concrusão.
    E rogo-vos como amiga,
    Que samicas vós sereis,
    Que de parte me faleis
    Antes que outrem vo-lo diga.
    E, se não fiais de mi,
    Esteja vossa mãe aí,
    E Lianor Vaz de presente.
    Veremos se sois contente
    Que casemos na boa hora.»
INÊS    Des que nasci até agora
    Não vi tal vilão com’este,
    Nem tanto fora de mão!
LIANOR    Não queirais ser tão senhora.
    Casa, filha, que te preste,
    Não percas a ocasião.
    Queres casar a prazer
    No tempo d’agora, Inês?
    Antes casa, em que te pês,
    Que não é tempo d’escolher.
    Sempre eu ouvi dizer:
    «Ou seja sapo ou sapinho,
    Ou marido ou maridinho,
    Tenha o que houver mister.»
    Este é o certo caminho.
MÃE    Pardeus, amiga, essa é ela!
    «Mata o cavalo de sela
    E bom é o asno que me leva».
    Filha, «no Chão de Couce
    Quem não puder andar choute.»
E: «mais quero eu quem m’adore
    Que quem faça com que chore».
    Chamá-lo-ei, Inês?
INÊS    Si.
    Venha e veja-me a mi.
    Quero ver quando me vir
    Se perderá o presumir
    Logo em chegando aqui,
    Pera me fartar de rir.
MÃE    Touca-te, se cá vier
    Pois que pera casar anda.
INÊS    Essa é boa demanda!
    Cerimónias há mister
    Homem que tal carta manda?
    Eu o estou cá pintando:
    Sabeis, mãe, que eu adivinho?
    Deve ser um vilãozinho
    Ei-lo, se vem penteando:
    Será com algum ancinho?
Aqui vem Pêro Marques, vestido como filho de lavrador rico, com um gabão azul deitado ao ombro, com o capelo por diante, e vem dizendo:
PÊRO    Homem que vai aonde eu vou
    Não se deve de correr
    Ria embora quem quiser
    Que eu em meu siso estou.
    Não sei onde mora aqui...
    Olhai que m’esquece a mi!
    Eu creo que nesta rua...
    E esta parreira é sua.
    Já conheço que é aqui.
    Chega Pêro Marques aonde elas estão, e diz:
    Digo que esteis muito embora.
    Folguei ora de vir cá...
    Eu vos escrevi de lá
    Üa cartinha, senhora...
    E assi que de maneira...
MÃE    Tomai aquela cadeira.
PÊRO    E que val aqui uma destas?
INÊS    (Ó Jesu! que João das bestas!
    Olhai aquela canseira!)
Assentou-se com as costas pera elas, e diz:
PÊRO    Eu cuido que não estou bem...
MÃE    Como vos chamais, amigo?
PÊRO    Eu Pêro Marques me digo,
    Como meu pai que Deos tem.
    Faleceu, perdoe-lhe Deos,
    Que fora bem escusado,
    E ficamos dous eréos.
    Porém meu é o mor gado.
MÃE    De morgado é vosso estado?
    Isso viria dos céus.
PÊRO    Mais gado tenho eu já quanto,
    E o mor de todo o gado,
    Digo maior algum tanto.
    E desejo ser casado,
    Prouguesse ao Espírito Santo,
    Com Inês, que eu me espanto
    Quem me fez seu namorado.
    Parece moça de bem,
    E eu de bem, er também.
    Ora vós er ide vendo
    Se lhe vem milhor ninguém,
    A segundo o que eu entendo.
    Cuido que lhe trago aqui
    Pêras da minha pereira...
    Hão-de estar na derradeira.
    Tende ora, Inês, per i.
INÊS    E isso hei-de ter na mão?
PÊRO    Deitae as peas no chão.
INÊS    As perlas pera enfiar..
    Três chocalhos e um novelo...
    E as peias no capelo...
    E as pêras? Onde estão?
PÊRO    Nunca tal me aconteceu!
    Algum rapaz m’as comeu...
    Que as meti no capelo,
    E ficou aqui o novelo,
    E o pente não se perdeu.
    Pois trazia-as de boa mente...
INÊS    Fresco vinha aí o presente
    Com folhinhas borrifadas!
PÊRO    Não, que elas vinham chentadas
    Cá em fundo no mais quente.
    Vossa mãe foi-se? Ora bem...
    Sós nos leixou ela assi?...
    Cant’eu quero-me ir daqui,
    Não diga algum demo alguém...
INÊS    Vós que me havíeis de fazer?
    Nem ninguém que há-de dizer?
    (O galante despejado!).
PÊRO    Se eu fora já casado,
    D’outra arte havia de ser
    Como homem de bom recado.
INÊS    (Quão desviado este está!
    Todos andam por caçar
    Suas damas sem casar
    E este... tomade-o lá!).
PÊRO    Vossa mãe é lá no muro?
INÊS    Minha mãe eu vos seguro
    Que ela venha cá dormir
PÊRO    Pois, senhora, eu quero-me ir
    Antes que venha o escuro.
INÊS    E não cureis mais de vir.
PÊRO    Virá cá Lianor Vaz,
    Veremos que lhe dizeis...
INÊS    Homem, não aporfieis,
    Que não quero, nem me apraz.
    Ide casar a Cascais.
PÊRO    Não vos anojarei mais,
    Ainda que saiba estalar;
    E prometo não casar
    Até que vós não queirais.
    (Pêro vai-se, dizendo:)
    Estas vos são elas a vós:
    Anda homem a gastar calçado,
    E quando cuida que é aviado,
    Escarnefucham de vós!
    Creo que lá fica a pea...
    Pardeus! Bô ia eu à aldeia!

(Voltando atrás)
(Voltando atrás)
    Senhora, cá fica o fato?
INÊS    Olhai se o levou o gato...
PÊRO    Inda não tendes candea?
    Ponho per cajo que alguém
    Vem como eu vim agora,
    E vos acha só a tal hora:
    Parece-vos que será bem?
    Ficai-vos ora com Deos:
    Çarrai a porta sobre vós
    Com vossa candeazinha.
    E sicais sereis vós minha,
    Entonces veremos nós...
(Vai-se Pêro Marques e diz Inês Pereira:)
INÊS    Pessoa conheço eu
    Que levara outro caminho...
    Casai lá com um vilãozinho,
    Mais covarde que um judeu!
    Se fora outro homem agora,
    E me topara a tal hora,
    Estando assi às escuras,
    Dissera-me mil doçuras,
    Ainda que mais não fora...
(Vem a Mãe e diz:)
MÃE    Pêro Marques foi-se já?
INÊS    E pera que era ele aqui?
MÃE    E não t’agrada ele a ti?
INÊS    Vá-se muitieramá!
    Que sempre disse e direi:
    Mãe, eu me não casarei
    Senão com homem discreto,
    E assi vo-lo prometo
    Ou antes o leixarei.
(...)
    Casade-vos, filha minha.
Inês   Jesu! Jesu! Tão asinha!
    Isso me haveis de dizer?
    Quem perdeu um tal marido,
    Tão discreto e tão sabido,
    E tão amigo de minha vida?
LIANOR   Dai isso por esquecido,
    E buscai outra guarida.
    Pêro Marques tem, que herdou,
    Fazenda de mil cruzados.
    Mas vós quereis avisados...
INÊS   Não! já esse tempo passou.
    Sobre quantos mestres são
    Experiência dá lição.
LIANOR   Pois tendes esse saber
    Querei ora a quem vos quer
    Dai ò demo a opinião.
(...)
Vai Lianor Vaz por Pêro Marques, e fica Inês Pereira só, dizendo:
INÊS   Andar! Pêro Marques seja.
    Quero tomar por esposo
    Quem se tenha por ditoso
    De cada vez que me veja.
    Por usar de siso mero,
    Asno que me leve quero,
    E não cavalo folão.
    Antes lebre que leão,
    Antes lavrador que Nero.
    (...)
 (...)
    Casade-vos, filha minha.
Inês   Jesu! Jesu! Tão asinha!
    Isso me haveis de dizer?
    Quem perdeu um tal marido,
    Tão discreto e tão sabido,
    E tão amigo de minha vida?
LIANOR   Dai isso por esquecido,
    E buscai outra guarida.
    Pêro Marques tem, que herdou,



(...)
    Casade-vos, filha minha.
Inês   Jesu! Jesu! Tão asinha!
    Isso me haveis de dizer?
    Quem perdeu um tal marido,
    Tão discreto e tão sabido,
    E tão amigo de minha vida?
LIANOR   Dai isso por esquecido,
    E buscai outra guarida.
    Pêro Marques tem, que herdou,



O VELHO DA HORTA

                  Esta seguinte farsa é o seu argumento que um homem honrado e muito rico, já velho, tinha uma horta: e andando uma manhã por ela espairecendo, sendo o seu hortelão fora, veio uma moça de muito bom parecer buscar hortaliça, e o velho em tanta maneira se enamorou dela que, por via de uma alcoviteira, gastou toda a sua fazenda. A alcoviteira foi açoitada, e a moça casou honradamente. Entra logo o velho rezando pela horta. Foi representada ao mui sereníssimo rei D. Manuel, o primeiro desse nome. Era do Senhor de M.D.XII.
VELHO: Pater noster criador, Qui es in coelis, poderoso, Santificetur, Senhor,nomen tuum vencedor, nos céu e terra piedoso. Adveniat a tua graça, regnum tuum sem mais guerra; voluntas tua se faça sicut in coelo et in terra. Panem nostrum, que comemos, cotidianum teu é; escusá-lo não podemos; inda que o não mereceremos tu da nobis. Senhor, debita nossos errores, sicut et nos, por teu amor, dimittius qualquer error, aos nosso devedores. Et ne nos, Deus, te pedimos, inducas, por nenhum modo, in tentationem caímos porque fracos nos sentimos formados de triste lodo. Sed libera nossa fraqueza, nos a malo nesta vida; Amen, por tua grandeza, e nos livre tua alteza da tristeza sem medida.
Entra a MOÇA na horta e diz o VELHO:
Senhora, benza-vos Deus,
MOÇA: Deus vos mantenha, senhor.
VELHO: Onde se criou tal flor? Eu diria que nos céus.
MOÇA: Mas no chão.
VELHO: Pois damas se acharão que não são vosso sapato!
MOÇA: Ai! Como isso é tão vão, e como as lisonjas são de barato!
VELHO: Que buscais vós cá, donzela, senhora, meu coração?
MOÇA: Vinha ao vosso hortelão, por cheiros para a panela.
VELHO: E a isso vinde vós, meu paraíso. Minha senhora, e não a aí?
MOÇA: Vistes vós! Segundo isso, nenhum velho não tem siso natural.
VELHO: Ó meus olhinhos garridos, mina rosa, meu arminho!
MOÇA: Onde é vosso ratinho? Não tem os cheiros colhidos?
VELHO: Tão depressa vinde vós, minha condensa, meu amor, meu coração!
MOÇA: Jesus! Jesus! Que coisa é essa? E que prática tão avessa da razão!
VELHO: Falai, falai doutra maneira! Mandai-me dar a hortaliça. Grão fogo de amor me atiça, ó minha alma verdadeira!
MOÇA: E essa tosse? Amores de sobreposse serão os da vossa idade; o tempo vos tirou a posse.
VELHO: Mas amo que se moço fosse com a metade.
MOÇA: E qual será a desastrada que atende vosso amor?
VELHO: Oh minha alma e minha dor, quem vos tivesse furtada!
MOÇA: Que prazer! Quem vos isso ouvir dizer cuidará que estais vivo, ou que estai para viver!
VELHO: Vivo não no quero ser, mas cativo!
MOÇA: Vossa alma não é lembrada que vos despede esta vida?
VELHO: Vós sois minha despedida, minha morte antecipada.
MOÇA Que galante! Que rosa! Que diamante! Que preciosa perla fina!
VELHO: Oh fortuna triunfante! Quem meteu um velho amante com menina! O maior risco da vida e mais perigoso é amar, que morrer é acabar e amor não tem saída, e pois penado, ainda que amado, vive qualquer amador; que fará o desamado, e sendo desesperado de favor?
MOÇA: Ora, dá-lhe lá favores! Velhice, como te enganas!
VELHO: Essas palavras ufanas acendem mais os amores.
MOÇA: Bom homem, estais às escuras! Não vos vedes como estais?
VELHO: Vós me cegais com tristuras, mas vejo as desaventuras que me dais.
MOÇA: Não vedes que sois já morto e andais contra a natura?
VELHO: Oh flor da mor formosura! Quem vos trouxe a este meu horto? Ai de mim! Porque, logo que vos vi, cegou minha alma, e a vida está tão fora de si que, partindo-vos daqui, é partida.
MOÇA: Já perto sois de morrer. Donde nasce esta sandice que, quanto mais na velhice, amais os velhos viver? E mais querida, quando estais mais de partida, é a vida que deixais?
VELHO: Tanto sois mais homicida, que, quando amo mais a vida, ma tirais. Porque meu tempo d’agora vai vinte anos dos passados; pois os moços namorados a mocidade os escora. Mas um velho, em idade de conselho, de menina namorado... Oh minha alma e meu espelho!
MOÇA: Oh miolo de coelho mal assado!
VELHO: Quanto for mais avisado quem de amor vive penando, terá menos siso amando, porque é mais namorado. Em conclusão: que amor não quer razão, nem contrato, nem cautela, nem preito, nem condição, mas penar de coração sem querela.
MOÇA: Onde há desses namorados? A terra está livre deles! Olho mau se meteuneles! Namorados de cruzados, isso si!...
VELHO: Senhora, eis-me eu aqui, que não sei senão amar. Oh meu rosto de alfeni! Que em hora má eu vos vi.
MOÇA: Que velho tão sem sossego!
VELHO: Que garridice me viste?
MOÇA: Mas dizei, que me sentiste, remelado, meio cego?
VELHO: Mas de todo, por mui namorado modo, me tendes, minha senhora, já cego de todo em todo.
MOÇA: Bem está, quando tal lodo se namora.
VELHO: Quanto mais estais avessa, mais certo vos quero bem.
MOÇA: O vosso hortelão não vem? Quero-me ir, que estou com pressa.
VELHO: Que fermosa! Toda a minha horta é vossa.
MOÇA: Não quero tanta franqueza.
VELHO: Não pra me serdes piedosa, porque, quanto mais graciosa, sois crueza. Cortai tudo, é permitido, senhora, se sois servida. Seja a horta destruída, pois seu dono é destruído.
MOÇA: Mana minha! Julgais que sou a daninha? Porque não posso esperar, colherei alguma coisinha, somente por ir asinha e não tardar.
VELHO: Colhei, rosa, dessas rosas! Minhas flores, colhei flores! Quisera que esses amores foram perlas preciosas e de rubis o caminho por onde is, e a horta de ouro tal, com lavores mui sutis, pois que Deus fazer-vos quis angelical. Ditoso é o jardim que está em vosso poder. Podeis, senhora, fazer dele o que fazeis de mim.
MOÇA: Que folgura! Que pomar e que verdura! Que fonte tão esmerada!
VELHO: N’água olhai vossa figura: vereis minha sepultura ser chegada.
Canta a MOÇA:
“Cual es la niña que coge las flores sino tiene amores?
Cogia la niña la rosa florida:
El hortelanico prendas le pedia sino tienes amores.”
Assim cantando, colheu a MOÇA da horta o que vinha buscar e, acabado, diz:
Eis aqui o que colhi; vede o que vos hei de dar.
VELHO: Que me haveis vós de pagar, pois que me levais a mi? Oh coitado! Que amor me tem entregado e em vosso poder me fino, como pássaro em mão dado de um menino!
MOÇA: Senhor, com vossa mercê.
VELHO: Por eu não ficar sem a vossa, queria de vós uma rosa.
MOÇA: Uma rosa? Para que?
VELHO: Porque são colhidas de vossa mão, deixar-me-eis alguma vida, não isente de paixão mas será consolação na partida.
MOÇA: Isso é por me deter, Ora tomai, e acabar!
Tomou o VELHO a mão:
Jesus! E quereis brincar? Que galante e que prazer!
VELHO: Já me deixais? Eu não vos esqueço mais e nem fico só comigo. Oh martírios infernais! Não sei por que me matais, nem o que digo.
Vem um PARVO, criado do VELHO, e diz:
Dono, dizia minha dona que fazeis vós cá té à noite?
VELHO: Vai-te! Queres que t’açoite? Oh! Dou ao demo a intrujona sem saber!
PARVO: Diz que fosseis vós comer e não demoreis aqui.
VELHO: Não quero comer, nem beber.
PARVO: Pois que haver cá de fazer?
VELHO: Vai-te daí!
PARVO: Dono, veio lá meu tio, estava minha dona, então ela, metendo lume à panela o fogo logo subiu.
VELHO: Oh Senhora! Como sei que estais agora sem saber minha saudade. Oh! Senhora matadora, meu coração vos adora de vontade!
PARVO: Raivou tanto! Resmungou! Oh pesar ora da vida! Está a panela cozida, minha dona não jantou. Não quereis?
VELHO: Não hei de comer desta vez, nem quero comer bocado.
PARVO: E se vós, dono, morreis? Então depois não falareis senão finado. Então na terra nego jazer, então, finar dono, estendido.
VELHO: Antes não fora eu nascido, ou acabasse de viver!
PARVO: Assim, por Deus! Então tanta pulga em vós, tanta bichoca nos olhos, ali, cos finado, sós, e comer-vos-ão a vós os piolhos. Comer-vos-ão as cigarras e os sapos! Morrei! Morrei!
VELHO: Deus me faz já mercê de me soltar as amaras. Vai saltando! Aqui te fico esperando; traze a viola, e veremos.
PARVO: Ah! Corpo de São Fernando! Estão os outros jantando, e cantaremos?!...
VELHO: Fora eu do teu teor, por não se sentir esta praga de fogo, que não se apaga, nem abranda tanta dor... Hei de morrer.
PARVO: Minha dona quer comer; Vinde, infeliz, que ela brada! Olhai! Eu fui lhe dizer dessa rosa e do tanger, e está raivada!
VELHO Vai tu, filho Joane, e dize que logo vou, que não há tempo que cá estou.
PARVO: Ireis vós para o Sanhoane! Pelo céu sagrado, que meu dono está danado! Viu ele o demo no ramo. Se ele fosse namorado, logo eu vou buscar outro amo.
Vem a MULHER do VELHO e diz:
Hui! Que sina desastrada! Fernandeanes, que é isto?
VELHO: Oh pesar do anticristo. Oh velha destemperada! Vistes ora?
MULHER: E esta dama onde mora? Hui! Infeliz dos meus dias! Vinde jantar em má hora: por que vos meter agora em musiquias?
VELHO: Pelo corpo de São Roque, vai para o demo a gulosa!
MULHER: Quem vos pôs aí essa rosa? Má forca que vos enforque!
VELHO: Não maçar! Fareis bem de vos tornar porque estou tão sem sentido; não cureis de me falar, que não se pode evitar ser perdido!
MULHER: Agora com ervas novas vos tornastes garanhão!...
VELHO: Não sei que é, nem que não, que hei de vir a fazer trovas.
MULHER: Que peçonha! Havei, infeliz, vergonha ao cabo de sessenta anos, que sondes vós carantonha.
VELHO: Amores de quem me sonha tantos danos!
MULHER: Já vós estais em idade de mudardes os costumes.
VELHO: Pois que me pedis ciúmes, eu vo-los farei de verdade.
MULHER: Olhai a peça!
VELHO: Que o demo em nada me empeça, senão morrer de namorado.
MULHER: Está a cair da tripeça e tem rosa na cabeça e embeiçado!...
VELHO: Deixar-me ser namorado, porque o sou muito em extremo!
MULHER: Mas vos tome inda o demo, se vos já não tem tomado!
VELHO: Dona torta, acertar por esta porta, Velha mal-aventurada! Saia, infeliz , desta horta!


ERA CLÁSSICARENASCIMENTO EM PORTUGAL EORIGENS DA LITERATURA NO BRASIL


Sá de Miranda - Francisco Sá de Miranda, natural de Coimbra, doutorou-se em leis na Universidade de Lisboa, a mesma que seria transferida para sua cidade natal em l537. Em 1521, empreendeu uma viagem à Itália, onde parece ter entrado em contacto com Sannazaro, Ariosto e outras figuras do Renascimento italiano. Em 1527, de regresso a Portugal, fez representar a primeira peça do teatro clássico em língua portuguesa, a comédia Os Estrangeiros. Homem austero e incorruptível, Sá de Miranda retirou-se para longe da Corte, por volta de 1530, talvez incompatibilizado com a alteração dos costumes provocada pelo comércio oriental e riqueza fácil. Mesmo no retiro, continuou vigilante e ativo na promoção do novo gosto literário, mantendo intensa correspondência com os intelectuais da época. Embora houvesse aceitado as sugestões temáticas e formais do Renascimento italiano, nunca abandonou inteiramente certas fórmulas do lirismo tradicional de raízes medievais, adotando a medida velha como padrão métrico para inúmeras composições.  Morreu em 1558.

OS ESTRANGEIROS (extrato)

                  “Estranhais-me, que bem o vejo: que será? que não será? que entremez é este? Foi grã dita que não apodais já, mas não há-de falecer quem me arremede. Os Portugueses sois assi feitos logo pola primeira, despois dareis o sangue dos braços. Agora parece que me estranham ainda mais. Parece-vos que não diz a fala cos trajos? Esperáveis deles alguns triques troques. Ora me ouvi, dir-vos-ei quem sou, donde venho, e ao que venho. Quanto ao primeiro, sou üa pobre velha estrangeira, o meu nome é Comédia; mas não cuideis que me haveis por isso de comer, porque eu naci em Grécia, e lá me foi posto o nome, por outras razoes que não pertencem a esta vossa língua.”
António Ferreira (1528-1569) nasceu em Lisboa, estudando Direito na Universidade de Coimbra. Além de desembargador, cultivou a poesia, sendo o discípulo mais famoso de Sá de Miranda. Os seus poemas foram publicados por seu filho, Miguel Leite Ferreira, em 1598, sob o título de Poemas Lusitanos. Escreveu as comédias Bristo e Cioso, publicas em 1622, e a tragédia Castro, sua maior obra, considerada o melhor texto teatral do Renascimento português, epublicada em 1587. É considerado um dos maiores poetas do classicismo renascentista de língua portuguesa.
TRAGÉDIA CASTRO (extratos)
ACTO IV
INÊS E O REI
CASTRO:
Meu Senhor,
Esta he a mãy de teus netos. Estes são
Filhos daquelle filho, que tanto amas.
Esta he aquella coitada molher fraca,
Contra quem vens armado de crueza.
Aqui me tens. Bastava teu mandado
Pera eu segura, e livre t’esperar,
Em ti, e em minh’innocencia confiada.
Escusarás, Senhor, todo este estrondo
D’armas, e Cavaleiros; que não foge.
Nem se teme a innocencia, da justiça.
E quando meus peccados me accusaram.
A ti fora buscar: a ti tomara
Por vida em minha morte: agora vejo
Que tu me vens buscar. Beijo estas mãos
Reaes tam piedosas: pois quiseste
Por ti vir-te informar de minhas culpas.
Conhece-mas, Senhor, como bom Rey,
Como clemente, e justo, e como pay
De teus vassallos todos, a que nunca
Negaste piedade com justiça.
Que vês em mim, Senhor? Que vês em quem
Em tuas mãos se mete tam segura?
Que furia, que ira esta he, com que me buscas?
Mais contra imigos vens, que cruelmente
T’andassem tuas terras destruindo
A ferro, e fogo. Eu tremo, senhor, tremo
De me ver ante ti, como me vejo:
Molher, moça, innocente, serva tua,
Tam só, sem por mim ter quem me defenda.
Que a lingua não s’atreve, o sprito treme
Ante tua presença, porém possam
Estes moços, teus netos, defender-me.
Elles falem por mim, elles sós ouve:
Mas não te falaram, Senhor, com lingua,
Que inda não podem: falam-te co as almas,
Com suas idades tenras, com seu sangue,
Que he teu, faláram: seu desemparo
T’está pedindo vida: não lha negues
Teus netos são, que nunca téqui viste:
E vê-los em tal tempo, que lhes tolhes
A glória, e o prazer, qu’em seus spritos
Lhe está Deos revelando de te verem.
REY:
Tristes foram teus fados, Dona Ines,
Triste ventura a tua.
CASTRO:
Antes ditosa,
Senhor, pois que me vejo ante teus olhos
Em tempo tam estreito: poem-nos hora,
Como nos outros soes, nesta coitada.
Enche-os de piedade com justiça.
Vens-me, senhor, matar? porque me matas?
REY:
Teus pecados te matam: cuida nelles.
(...)
REY:
Ó molher forte!
Venceste-me abrandaste-me. Eu te deixo,
Vive, em quanto Deos quer.
CASTRO:
Rey piadoso,
Vive tu, pois perdoas: moura aquelle,
Que sua dura tenção leva adiante.
PACHECO, REY, COELHO
Oh Senhor, que nos matas! que fraqueza
Essa he indigna de ti? de hum real peito?
Vence-te húa molher, e estranhas tanto
Vencer assi teu filho? que já agora
Terá desculpa honesta: não te esqueças
Da tenção tam fundada, que te trouxe.
REY:
Não pode o meu sprito consentir
Em crueza tamanha.
PACHECO:
Mór crueza
Fazes agora ao Reyno – agora fazes
O que faz a pouca agora em grande fogo.
Agora mais s’acende, arderá mais
O fogo do teu filho. A que vieste?
A pôr em mór perigo teu estado?
(...)
REY:
Não vejo culpa, que mereça pena.
PACHECO:
Inda hoje a viste, quem ta esconde agora?
REY:
Mais quero perdoar, que ser injusto.
COELHO:
Injusto he quem perdoa a pena justa.
REY:
Peque antes ness estremo, que em crueza.
COELHO:
Não se consente o Rey peccar em nada.
REY:
Sou homem.
COELHO:
Porém Rey.
REY:
O Rey perdoa.
PACHECO:
Nem sempre perdoar he piedade.
REY:
Eu vejo húa innocente, mãy de hús filhos
De meu filho, que mato juntamente.
COELHO:
Mas dás vida a teu filho, salvas-lh’alma,
Pacificas teu Reyno: a ti seguras.
Restitues-nos honra, paz, descanso.
Destrues a traydores; cortas quanto
Sobre ti, e teu neto se tecia.
Offensas, senhor, publicas não querem
Perdão, mas rigor grande. Daqui pende
Ou remedio d’hum reyno. ou quéda certa.
Abre os olhos às causas necessarias,
Que te monstramos sempre, e que tu vias.
Cuida no que emprendeste, e no que deixas.
O odio de teu filho contra ti,
Contra nós tal será, como qual fora,
Fazendo-se, o que deixas por fazer.
A ti ficam seus filhos, ama-os, honra-os.
Assi lh’amansarás grã parte da ira.
Senhor, por teu estado te pedimos:
Polo amor do teu povo, com que t’ama,
Polo com que sabemos que nos amas:
Mais estas razões fortes, que essa mágoa
Injusta, que depois chorarás mais,
Perdendo esta occasião, que Deos te mostra.
REY:
Eu não mando, nem vedo. Deos o julgue.
Vós outros o fazei, se vos parece
Justiça, assi matar quem não tem culpa.
COELHO:
Essa licenca basta: a tenção nossa
Nos salvará cos homens, e com Deos.
CORO:
Em fim venceo a ira, cruel imiga
De todo bom conselho. Ah quanto podem
Palavras, e razões em peito brando!
Eu vejo teu sprito combatido
De mil ondas, ó Rey. Bom he teu zelo:
O conselho leal: cruel a obra.




[LITERATURA QUINHENTISTA - LITERATURA DE FORMAÇÃO - PADRE JOSÉ DE ANCHIETA]



De acordo com o mito, este poema teria sido escrito nas areias da praia de Iperoig (Peruíbe?)
DE BEATA VIRGINE DEI MATRE MARIA
Poema à Virgem
José de Anchieta

DE COMPASSIONE ET PLANCTU VIRGINIS IN MORTE FILII
Mens mea, quid tanto torpes absorpta sopore?
Quid stertis somno desidiosa gravi?

Nec te cura movet lacrimabilis ulIa parentis,
Funera quæ nati flet truculenta sui?
Viscera cui duro tabescunt ægra dolore,
Vulnera dum præsens, quæ tulit ilIe, videt.
En, quocunque oculos converteris, omnia lesu
Occurrent oculis sanguine plena tuis.
Respice ut, æterni prostrato ante ora Parentis,
Sanguineus toto corpore sudor abit.
Respice ut immanis captum quasi turba latronem
Proterit, et laqueis colla manusque ligat.
Respice ut ante Annam sævus divina satelles
Duriter armata percutit ora manu.
Cernis ut in Caiphae conspectu mille superbi
Probra humilis, colaphos sputaque foeda tulit.
Nec faciem avertit, cum percuteretur; et hosti
Vellendam barbam cæsariemque dedit.
Adspice quam diro crudelis verbere tortor
Dilaniet Domini mitia membra tui.
Adspice quam duri lacerent sacra tempora vepres,
Diffluat et purus pulchra per ora cruor.
Nonne vides, totos lacerum crudeliter artus,
Grandia vix umeris pondera ferre suis?
Cernis ut innocuas peracuta cuspide ligno
Dextera tortoris figit iniqua manus.
Cernis ut innocuas peracuta cuspide plantas
Tortoris figit dextera sæva cruce.
Adspicis ut dura laceratus in arbore pendet,
Et tua divino sanguine furta luit.
Adspice: quam dirum transfosso in pectore vulnus,
Unde immixta fluit sanguine lympha, patet!
Omnia si nescis ,mater sibi vindicat ægra
Vulnera, quae natum sustinuisse vides.
Namque quot innocuo tulit ille in corpore pœnas,
Pectore tot mater fert miseranda pio.
Surge, age, et infensæ per mœnia iniqua Sionis
Sollicito matrem pectore quaere Dei.
Signa tibi passim notissima liquit uterque,
Clara tibi certis est via facta notis.
Ille viam multo raptatus sanguine tinxit,
Illa piis lacrimis mœsta rigavit humum.
Quaere piam matrem, forsan solabere flentem.
Indulget lacrimis sicubi mæsta piis.
Si tanto admittit solatia nulla dolori,
Quod vitam vitæ mors tulit atra suæ,
At saltem effundes lacrimas, tua crimina plangens,
Crimina, quæ diræ causa fuere necis.
Sed quo te, Mater, turbo tulit iste doloris?
Quæ te plangentem funera terra tenet?
Num capit ille tuos gemitus lamentaque collis,
Putris ubi humanis ossibus albet humus?
Numquid odoriferæ cruciaris in arboris umbra,
Unde tuus lesus, unde pependit amor?
Hic lacrimosa sedes, et primæ noxia matris
Gaudia, crudeli fixa dolore, luis
Illa fuit vetita corrupta sub arbore, fructum
Dum legit audaci, stulta loquaxque, manu.
Iste tui ventris pretiosus ab arbore fructus
Dat vitam matri tempus in omne piæ,
Quæque malo primi succo periere veneni
Suscitat et tradit pignora cara tibi.
Sed periit tua vita, tui peramabile cordis
Delicium, vires occubuere tuæ.
Raptus ab infesto crudeliter occidit hoste,
Qui tibi de mammis dulce pependit onus.
Occubuit diris plagis confossus lesus,
Ille decor mentis, gloria luxque, tuæ;
Quotque illum plagæ, tot te affixere dolores:
Una etenim vobis vita duobus erat.
Scilicet hunc medio cum serves corde, nec unquam
Liquerit hospitium pectoris ille tui,
Ut sic discerptus letum crudele subiret,
Scindendum rigido cor fuit ense tibi.
Cor tibi dira pium misere rupere flagella,
Spina cruentavit cor tibi dira pium.
In te cum clavis coniuravere cruentis
Omnia, quæ in ligno natus acerba tulit.
Sed cur vivis adhuc, vita moriente Deoque?
Cur non es simili tu quoque rapta nece,
Quando non illo est animam exhalante revulsum
Cor tibi, si vinctos mens tenet una duos?
Non posset, fateor, tantos tua vita dolores
Ferre, nec id nimius sustinuisset amor,
Ni te divino firmaret robore natus,
Linqueret ut cordi plura ferenda tuo.
Vivis adhuc, Mater, plures passura labores;
Ultima te in sævo iam petet unda mari.
Sed tege maternum vultum, pia lumina conde,
Ecce furens auras verberat hasta leves:
Et sacra defuncti discindit pectora nati
Insuper in medio lancea corde tremens.
Scilicet hæc etiam tantorum summa dolorum
Defuerat plagis adicienda tuis.
Hoc te supplicium, vulnus crudele manebat,
Hæc tibi servata est pœna gravisque dolor.
In cruce cum dulci figi tibi prole volebas
Virgineasque manus virgineosque pedes.
Ille sibi accepit rigidos cum stipite clavos,
Servata est cordi lancea dira tuo.
Iam potes, o Mater, compos requiescere voti,
Hic tibi totus abit cordis in ima dolor.
Quod gelida excepit corpus iam morte solutum,
Sola pio crudum pectore vulnus habes.
O sacrum vulnus, quod non tam ferrea cuspis,
Quam nimius nostri fecit amoris amor!
O flumen, medio paradisi e fonte refusum,
Cuius ab uberibus terra tumescit aquis!
O via regalis, gemmataque ianua cæli,
Præsidi turris, confugiique locus!
O rosa, divinae spirans virtutis odorem!
Gemma, poli solium qua sibi paupar emit!
Nidus, ubi puræ sua ponunt ova columbæ,
Castus ubi tenere pignora turtur alit!
O plaga, immensi splendoris honore rubescens,
Quæ pia divino pectora amore feris!
O vulnus, dulci præcordia vulnere findens,
Qua patet ad Christi cor via lata pium!
Testis inauditi, quo nos sibi iunxit, amoris!
Portus, ab æquoribus quo fugit icta ratis!
Ad te confugiunt, hostis quibus instat iniquus;
Tu præsens morbis es medicina malis.
ln te, tristitia pressus, solamina carpit,
Et grave de mæsto pectore ponit onus.
Per te reiecto, spe non fallente, timore,
Ingreditur cæli tecta beata reus.
O pacis sedes! o vivæ vena perennis,
Aeternam in vitam subsilientis, aquæ!
Hoc est, o Mater, soli tibi vulnus apertum,
Tu sola hoc pateris, tu dare sola potes.
Da mihi, ut ingrediar per apertum cuspide pectus,
Ut possim in Domini vivere corde mei.
Hac pia divini penetrabo ad viscera amoris,
Hic mihi erit requies, hic mihi certa domus.
Hic mea sanguineo redimam delicta liquore,
Hic animi sordes munda lavabit aqua.
His mihi sub tectis erit, his in sedibus omnes
Vivere dulce dies, hic mihi dulce mori!

COMPAIXÃO DA VIRGEM NA MORTE DO FILHO
Por que ao profundo sono, alma, tu te abandonas,
e em pesado dormir, tão fundo assim ressonas?
Não te move a aflição dessa mãe toda em pranto,
que a morte tão cruel do filho chora tanto?
O seio que de dor amargado esmorece,
ao ver, ali presente, as chagas que padece?
Onde a vista pousar, tudo o que é de Jesus,
ocorre ao teu olhar vertendo sangue a flux.
Olha como, prostrado ante a face do Pai,
todo o sangue em suor do corpo se lhe esvai.
Olha como a ladrão essas bárbaras hordas
pisam-no e lhe retêm o colo e mãos com cordas.
Olha, perante Anás, como duro soldado
o esbofeteia mau, com punho bem cerrado.
Vê como, ante Caifás, em humildes meneios,
agüenta opróbrios mil, punhos, escarros feios.
Não afasta seu rosto ao que o bate, e se abeira
do que duro lhe arranca a barba e cabeleira.
Olha com que azorrague o carrasco sombrio
retalha do Senhor a meiga carne a frio.
Olha como lhe rasga a cerviz rijo espinho,
e o sangue puro risca a face toda arminho.
Pois não vês que seu corpo, incivilmente leso,
mal susterá ao ombro o desumano peso?
Vê como a dextra má finca em lenho de escravo
as inocentes mãos com aguçado cravo.
Olha como na cruz finca a mão do algoz cego
os inocentes pés com aguçado prego.
Ei-lo, rasgado jaz nesse tronco inimigo,
e c'o sangue a escorrer paga teu furto antigo!
Vê como larga chaga abre o peito, e deságua
misturado com sangue um rio todo d'água.
Se o não sabes, a mãe dolorosa reclama
para si quanto vês sofrer ao filho que ama.
Pois quanto ele aguentou em seu corpo desfeito,
tanto suporta a mãe no compassivo peito.
Ergue-te pois e, atrás da muralha ferina
cheio de compaixão, procura a mãe divina.
Deixaram-te uma e outro em sinais bem marcada
a passagem: assim, tornou-se clara a estrada.
Ele aos rastros tingiu com seu sangue tais sendas,
ela o solo regou com lágrimas tremendas.
Procura a boa mãe, e a seu pranto sossega,
se acaso ainda aflita às lágrimas se entrega.
Mas se essa imensa dor tal consolo invalida,
porque a morte matou a vida à sua vida,
ao menos chorarás todo o teu latrocínio,
que foi toda a razão do horrível assassínio.
Mas onde te arrastou, mãe, borrasca tão forte?
que terra te acolheu a prantear tal morte?
Ouvirá teu gemido e lamento a colina,
em que de ossos mortais a terra podre mina?
Sofres acaso tu junto à planta do odor,
em que pendeu Jesus, em que pendeu o amor?
Eis-te aí lacrimosa a curtir pena inteira,
pagando o mau prazer de nossa mãe primeira!
Sob a planta vedada, ela fez-se corruta:
colheu boba e loquaz, com mão audaz a fruta.
Mas a fruta preciosa, em teu seio nascida,
à própria boa mãe dá para sempre a vida,
e a seus filhos de amor que morreram na rega
do primeiro veneno, a ti os ergue e entrega.
Mas findou tua vida, essa doce vivência
do amante coração: caiu-te a resistência!
O inimigo arrastou a essa cruz tão amarga
quem dos seios, em ti, pendeu qual doce carga.
Sucumbiu teu Jesus transpassado de chagas,
ele, o fulgor, a glória, a luz em que divagas.
Quantas chagas sofreu, doutras tantas te dóis:
era uma só e a mesma a vida de vós dois!
Pois se teu coração o conserva, e jamais
deixou de se hospedar dentro de teus umbrais,
para ferido assim crua morte o tragar,
com lança foi mister teu coração rasgar.
Rompeu-te o coração seu terrível flagelo,
e o espinho ensangüentou teu coração tão belo.
Conjurou contra ti, com seus cravos sangrentos,
quanto arrastou na cruz o filho, de tormentos.
Mas, inda vives tu, morto Deus, tua vida?
e não foste arrastada em morte parecida?
E como é que, ao morrer, não roubou teus sentidos,
se sempre uma alma só reteve os dois unidos?
Não puderas, confesso, agüentar mal tamanho,
se não te sustentasse amor assim estranho;
se não te erguesse o filho em seu válido busto,
deixando-te mais dor ao coração robusto.
Vives ainda, ó mãe, p'ra sofrer mais canseira:
já te envolve no mar uma onda derradeira.
Esconde, mãe, o rosto e o olhar no regaço:
eis que a lança a vibrar voa no leve espaço.
Rasga o sagrado peito a teu filho já morto,
fincando-se a tremer no coração absorto.
Faltava a tanta dor esta síntese finda,
faltava ao teu penar tal complemento ainda!
Faltava ao teu suplício esta última chaga!
tão grave dor e pena achou ainda vaga!
Com o filho na cruz tu querias bem mais:
que pregassem teus pés, teus punhos virginais.
Ele tomou p'ra si todo o cravo e madeiro
e deu-te a rija lança ao coração inteiro.
Podes mãe, descansar; já tens quanto querias:
Varam-te o coração todas as agonias.
Este golpe encontrou o seu corpo desfeito:
só tu colhes o golpe em compassivo peito.
Chaga santa, eis te abriu, mais que o ferro da lança,
o amor de nosso amor, que amou sem temperança!
Ó rio, que confluis das nascentes do Edém,
todo se embebe o chão das águas que retém!
Ó caminho real, áurea porta da altura!
Torre de fortaleza, abrigo da alma pura!
Ó rosa a trescalar santo odor que embriaga!
Jóia com que no céu o pobre um trono paga!
Doce ninho no qual pombas põem seus ovinhos
e casta rola nutre os tenros filhotinhos!
Ó chaga que és rubi de ornamento e esplendor,
cravas os peitos bons de divinal amor!
Ó ferida a ferir corações de imprevisto,
abres estrada larga ao coração de Cristo!
Prova do estranho amor, que nos força à unidade!
Porto a que se recolhe a barca em tempestade!
Refugiam-se a ti os que o mau pisa e afronta:
mas tu a todo o mal és medicina pronta!
Quem se verga em tristeza, em consolo se alarga:
por ti, depõe do peito a dura sobrecarga!
Por ti, o pecador, firme em sua esperança,
sem temor, chega ao lar da bem-aventurança!
Ó morada de paz! sempre viva cisterna
da torrente que jorra até a vida eterna!
Esta ferida, ó mãe, só se abriu em teu peito:
quem a sofre és tu só, só tu lhe tens direito.
Que nesse peito aberto eu me possa meter,
possa no coração de meu Senhor viver!
Por aí entrarei ao amor descoberto,
terei aí descanso, aí meu pouso certo!
No sangue que jorrou lavarei meus delitos,
e manchas delirei em seus caudais benditos!
Se neste teto e lar decorrer minha sorte,
me será doce a vida, e será doce a morte!

(Padre José de Anchieta)

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